quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Minha visita ao gath Dashashwamedth

Minha visita a um gath em Varanasi

Capitulo 1 – a decisão de ir.

Eram 15:30 e voltamos ao hotel, eu e Solange, após um dia cansativo sob um sol escaldante. Tinhamos acordado as 5:00 e passamos o dia todo passeando com o guia. Estávamos um bagaço só. Disse então que era ainda cedo, e que devíamos sair e aproveitar o restinho do dia. Solange disse que estava muito cansada, e que desejava mesmo era descansar. Propus descansarmos um pouco e em seguida ir ao Dashashwamedh Gath para ver se tinha ali alguma cremação em curso, pois ainda não tinhamos visto nenhum. Solange sugeriu que eu fosse sozinho, o dia estava acabando, não insisti, e também não hesitei, peguei minha carteira e sai com uma pressa danada do hotel.

Capitulo 2 – a contratação do transporte

Em frente ao portão do hotel, na calçada havia vários tuk tuks de plantão, e também alguns riquixas. Fui logo abordando um tuk-tuk-man, expliquei que pretendia ir ao gath Dashashwamedh Gath e comecei a negociar preço. Ele propôs uns 600 rupias. Um riquixa-man abelhudo estava por perto e ficou xereteando nossa conversa. Ele estava ansioso, impaciente, logo vi que ele queria conversa, mas não lhe dei atenção. Quando estava já quase fechando com o homem do tuk tuk, o riquixá-man, não se aguentando, gritou :

- Tuk tuk não ! não, não ! não !

Perguntei por que não, e ele :

- Tuk tuk não entra no gath ! Proibido ! Precisa de guia ! Eu vou levar você e quando chegar lá vou guiar voce. Sem guia, não chega lá !

O homem do tuk tuk disse que era muito longe para ir de riquixa, que ia demorar muito, sugeriu que eu contratasse o seu serviço até certo ponto, e dali em diante eu pegaria um riquixa na rua. Então era verdade a historia do riquixa-man, realmente tuk-tuk não entra no gath. Mas, aonde ia arranjar um guia, pegar qualquer um na rua ?, achei arriscado demais.

- Não é longe ! Uma hora ! Uma hora lá ! Se for tuk-tuk, vai achar riquixá, mas não achar guia ! Uma hora, uma hora ! , repetia desesperadamente o homem do riquixá mostrando o dedo indicador erguido para cima.

Olhei para ele, estava aflito, agitado. Parecia que queria me livrar de aborrecimentos, que eu ia perder tempo indo de tuk-tuk. Decidi então por ele, e o homem do tuk tuk se resignou, não fez cara feia e deu razão ao do homem riquixá, porem insistiu que uma hora era pouco e que ia chegar tarde demais ao gath. Mas ir de riquixá seria mais interessante e divertido do que ir de tuk-tuk. Ele fez o preço, 300 rupias, metade do preço do tuk-tuk, não chegou a ser uma grande vantagem, pois metade de nada é meio nada.

Capitulo 3 – a viagem

Parti então pelas ruas de Varanasi, aboletado no riquixa. O riquixa-man ia numa pressa danada, afoito, pedalando rigorosamente, gritando, tilintando a campainha, plim, plim, plim !

- Sai da frente, sai, sai ! dizia em hindi, pelo menos acho que era isso. Pela pressa dele, desconfiei que a viagem duraria mais de uma hora.

Como era de se esperar, a viagem de riquixá foi bem interessante, íamos passando por ruas apertadas, desviando de porcos, vacas, bicicletas, triciclos, pedestres e tudo mais; ia passando em cima de bosta de vaca, sentindo cheirinho de urina, ia curtindo aquela paisagem surreal, bagunçada. Ia vendo os vendedores de rua, os mendigos, as pessoas andando sorumbáticas e robotizadas na rua, caquéticas, indo para lugar nenhum fazer nada. Levamos um milhão de buzinadas, xingadas, e seguimos em frente.

A certa altura, entramos numa ruela estreita e damos de cara com um grupo de uns dez riquixas formando uma indiana fila indiana levando um grupo de vinte japoneses. O meu riquixa-man ficou possesso, gritou pedindo passagem, xingava todo mundo, tava com pressa, a japonesada assustada, tirava foto da gente, e eu ali morrendo de rir. Em seguida o meu riquixa-man emparelhou-se com outro riquixa, lado a lado, e os dois trocaram olhares desafiadores, não trocaram uma palavra, ficaram se olhando. De repente o outro riquixa disparou e o meu foi atrás dele, ultrapassou o tilintando a campainha e dando risada. E o outro raivoso dobrou os esforços, forçou as pedaladas tentando nos ultrapassar. Vi então que estava eu participando de um racha de riquixas.

Depois de uma hora, perguntei se estávamos já perto do gath.

- Quinze minutos...

E depois de quinze minutos, perguntei de novo.

- Quinze minutos...

E depois de dez minutos, perguntei de novo.

- Quinze minutos...

Capitulo 4 – a parada e a favela

Depois de uma hora e meia de viagem entramos numa região de ruas estreitas, onde realmente não circulavam tuk-tuks, nenhum veiculo motorizado. A multidão era impressionante, milhares de pessoas andando na rua, um formigueiro infernal. O riquixa-man ia gritando, sai da frente seus idiotas, e íamos abrindo alas no meio da multidão. Finalmente numa praça com zilhões de pessoas andando, ele parou em frente a um restaurantezinho fodido e fedido e disse :

- Me espere aqui. Não saia daqui de jeito nenhum. Vou estacionar o riquixa. Volto daqui a quinze minutos.

Fiquei esperando ele ali, passaram-se vinte minutos e comecei a ficar preocupado. Quando ele chegou, conforme ele tinha mencionado, disse que ia me guiar até ao gath, por que a partir daquele ponto não era possível mais andar de riquixa, as ruas eram estreitas demais, não cabiam um riquixa. O homenzinho atravessou a praça apressado, dizia “vamos rápido, rápido, siga-me !”, vi que ia me perder daquele maluco, se desgrudasse dele ia se perder na multidão para sempre; meti a mão no colarinho da camisa dele, ele se assustou, riu, e fui seguindo grudado no cangote nele.

Entramos então numa favela medonha, de ruazinhas estreitas, de mais ou menos dois metros e meio de largura. Desviamos de vacas gordas, passando apertado ao lado delas, eu com medo das vacas se moverem e ser contra a parede. Imaginem, morrer na Índia esmagado contra uma parede, por uma vaca sagrada, ninguém ia acreditar . As pessoas sentadas nas laterais da rua, sobre as suas bundas, meditabundas, vagabundas, fiscalizando a natureza, nos olhavam curiosos, e viam em mim a oportunidade de ganhar uns trocadinhos, ofereciam santinhos, amuletos, bolinhos, o diabo. Mas continuamos entrando na favela, ia sentido os cheiros, pisando nas bostas de vacas, nas poças de água podre, ignorando moleques pidões. De repente, escureceu, era a noite chegando, as luzes foram se acendendo, e eu perguntei se estávamos chegando ao gath.

- Quinze minutos !

A certa altura, bateu um medo, um pânico. Estava na verdade sendo sequestrado ! O riquixa-man maluco devia ser um bandido, me trouxe a esta favela, estava me levando até ao chefe da quadrilha ! Imaginei o cárcere, o pedido de resgate, a Solange desesperada, e gritei ao guia :

- Pare ! vamos voltar ao hotel ! Desisti de ir ao gath.

O guia me olhou sem entender direito, franziu a testa e disse :

- Quinze minutos !

Bem nesta hora caiu a luz, brecaute, coisa muito comum na India, e a favela mergulhou numa escuridão medonha, sem luar, um negrume total. Dai pensei “agora fodeu de vez...”. O sequestrador, digo, o riquixa-man, nem deu bola, tava acostumado com a escuridão, continuou andando. Pensei em dar no pé, aproveitar a escuridão e fugir, deixar o sequestrador, mas havia um detalhe : ia se perder naquele labirinto escuro, sem riquixa, sem googlemaps, GPS nem taxi para me resgatar daquele inferno.

De repente, uma lanterna se acendeu na nossa frente, eu levei um puta susto, “assalto na certa !”. Já ia erguendo as mãos ao alto, mas pelas roupas percebi que era um policial, que perguntou alguma coisa ao guia. Tava salvo, suspirei aliviado, o sequestrador ia ser preso. Conversaram e o policial pediu para seguir ele, que ia iluminando o caminho. Ufa ! Não era sequestro, o riquixa-guia-man era gente boa.

Com o brecaute tudo ficou preto e por isso eu consegui ver a certa distancia, talvez uns dois quilômetros adiante um clarão no céu, de cor laranja. Estávamos perto do gath, o clarão eram as fogueiras crematórias.

Capitulo 5 – a chegada e o outro guia

De repente volta a luz, a energia elétrica ! Algumas luzes se acendem, a favela agora é uma envolvida por uma penumbra, aqui e ali bulbos de lampadas fraquinhas de 20W. Vi então algumas lojas de venda de lenha, umas montoeiras de lenha, sinal que estávamos perto do gath; pois deduzi que as lenhas eram para cremação.

Finalmente chegamos ao gath Dashashwamedh ! Era 20:00 mais ou menos. Vi algumas grandes fogueiras, eram as cremações. Não senti cheiro nenhum. Fiquei realmente impressionado com aquilo, queria ver de perto, e o riquixa-man disse que ia me mostrar tudo. Eis que senão quando surge vindo do nada um indiano, um sujeito baixo, meio gordo, camisa xadrez, com ares de autoridade, me assedia e diz :

- Sou o guia oficial do gath. O senhor não tem autorização para circular aqui sem guia.

- Eu já tenho guia, disse apontando o riquixa-man.

- Ele não pode trabalhar aqui. Não tem autorização. Somente eu estou autorizado pelo governo a trabalhar de guia aqui. Tem que me contratar ! Tenho licença do governo !

Fiquei muito puto com o folgado, mandei ele tomar no cú em português, e disse que não ia contratar ele, e fui dizendo para ele dar o fora. E ordenei ao riquixa man para continuarmos o passeio pelo gath, mas ele ficou ressabiado, com medo do outro indiano, o “guia oficial do governo”; disse que não queria encrenca e que eu deveria continuar sozinho, ele ia ficar ali sentadinho me esperando. E o outro ficou muito puto comigo, e foi me seguindo; e de repente me chamou “sir, please...”. Ele tinha mudado o tom de voz, e baixado as bolas, estava mais humilde, resolvi ouvi-lo.

-Estou aqui desde 7:00 da manhã, todos os outros guias já foram embora. Preciso de dinheiro. Minha mãe está doente, por favor, me contrate, preciso muito de dinheiro.

Fingi que acreditei na doença da mãe, resolvi confiar nele, tratamos preço, 150 rupias. E ele não estava mentindo, era guia mesmo, foi explicando tudo, os rituais funerários, o fogo, etc. Havia um fogaréu imenso numa laje alta, disse que queria ir lá, e ele foi me guiando, subimos escadas. Lá havia quatro grandes fogueiras, fiquei ali vendo os corpos sendo cremado, o calorão, as lenhas crepitando, estalando, as carnes chiando, mas não senti cheiro nenhum. O guia insistiu muito que eu não tirasse fotos, respeitei. Tive medo de tirar foto, o clima era tenso, de respeito aos mortos, e se tirasse foto as almas dos fotografados iam me amaldiçoar a vida toda, e iam puxar os meus pés a noite, quando estivesse dormindo, iam bater portas e janelas no meio da noite.

Lá embaixo na beira do Ganges tinha uma família dando banho numa múmia branca, perguntei o que era aquilo, o guia me explicou que era o ritual, a múmia era um morto enrolado num manto branco, que foi mergulhado no Ganges para receber as bênçãos do rio. Ele disse que íamos lá ver o ritual defuntício, descemos e quando estávamos próximos ao defunto ele pediu para eu parar e esperar. Ele foi lá conversou com um dos familiares, pedindo permissão para que eu assistisse ao ritual, permissão concedida e ele acenou para eu se aproximar. Assisti a tudo aquilo, tiraram o cadáver do rio, que estava estendido sobre uma maca feita de bambu, esperaram o excesso de água se esgotar, e começaram a levar o cadáver em direção a um monte de lenha afastado do rio, fui seguindo a marcha fúnebre, imaginando aquela musiquinha de Frederic Chopin, familiares choravam. Perguntei se ia demorar para botar fogo, o guia respondeu que provavelmente estavam esperando outros familiares, e me explicou tudo, quem devia acender o fogo era o pai se o morto fosse filho; o filho mais velho se o morto fosse pai, o irmão mais velho do morto se o pai do morto já tinha morrido, o tio mais velho se os irmãos e o pai do morto já tinham morrido, me explicou a hierarquia, a ordem de quem tinha o direito de botar fogo e dar inicio à cremação.

O guia explicou que aqui não tinha funeral de rico e de pobre, era tudo igual. A única diferença era que os ricos compram bastante lenha, das boas para cremar seus mortos; e os pobres tentam comprar apenas a lenha necessária e suficiente, de qualidade ruim, mas as vezes não tem dinheiro e compram pouca lenha, e fica a caveira uns ossinhos sem queimar. Rico aqui crema com madeira de sândalo e o pobre com Pinus elliottii.

Capitulo 6 – A velhinha feliniana

Enfim, sem mais delongas, o guia me explicou todos os detalhes do lugar, as curiosidades, contou alguns causos; paguei ele, me agradeceu muito. Ia me despedir mas ele disse que gostaria de apresentar uma pessoa. Contrariado, concordei só para agradá-lo, já que tinha me tratado muito bem. Subimos então até ao alto do gath, lá tinha um espécie de coreto, uma casinha no meio da escuridão. Entramos ali e vi que tinha uma velhinha acocorada no chão, toda murcha, encolhidinha, esquelética e banguela. Com ajuda do guia, levantou-se e olhou interrogativa para mim, vi o brilho dos olhinhos da escuridão. O guia disse :

- Esta senhora veio do interior da India e está morando aqui nas margens do Ganges. Ela veio aqui para morrer, está juntando o dinheiro da lenha. Vive de esmolas, deve morrer logo, o senhor poderia por favor dar uma esmola ?

Meti a mão no bolso, não sabia o quanto dar a ela. Fiz um cálculo rápido, baseado nos poucos dados que tinha. Se o guia tinha pedido 150 rupias, então 50 rupias seria 33%, resolvi dar 50 rupias para a velhinha. Fiz mais um calculo, se todo mundo dar 50 rupias, ela podia arrecadar 500 rupias com dez turista por dia, um bom dinheiro. Assim, pela primeira vez na vida dei esmola para uma velhinha que estava esperando a morte chegar. E se não morresse logo ia fica milionária de tanta esmola de turista compadecido com a situação. E aí não ia mais querer morrer. E o fedorento do guia: “Só 50 rupias ?”, e riu da minha cara, decerto pensando “que muquirana...”. . Me deu vontade de mandar ele prá puta que o pariu, mas me contive, me despedi dele pensando que a velhinha era parte de uma armação, e que a historia da morte era fria, e que ele ficava com boa parte do valor que a velhinha arrecadava.

Fui me encontrar com o riquixá-man; ele continuava ali no lugar combinado, sentadinho contando estrelas e pensando na sua sofrida e insignificante existência, amuado pela minha delonga. Vi que estava de bico, e disse para ele :

- Me atrasei, mas só foram quinze minutos.

Capitulo 7 – a volta e a chegada

Voltamos ao hotel, a volta foi tranquila pois o transito melhorou, o povo foi dormir. Paguei o riquixa-man, e dei mais 200 rupias de gorjeta, ele ficou muito contente.

Fui para o quarto, eram mais ou menos 23:00, encontrei a Solange muito puta da vida, estava indignada comigo, disse que estava morrendo de preocupação, imaginando que tipo de catástrofe tinha acontecido comigo, se tinha eu levado chifrada de vaca na bunda, se tinha sido atropelado por um tuk tuk, comido bolinho de rua contaminado de bactérias e morrido intoxicado, se tinha sido sequestrado, etc. e que eu devia ter mais consideração com ela. E eu disse que não tinha culpa, expliquei tudo, ela ouviu com atenção e disse :

- Putz, ainda bem que não fui, ia ficar apavorada...

 

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